O que conta é que Sócrates e Diógenes chegaram oferecendo, cada um a seu modo, um diagnóstico e uma cura para uma vulnerabilidade que encontraram embutida no programa grego de elaboração do mundo, o programa da supremacia da razão.
A escola de Atenas do renascentista Rafael é entre outras coisas uma representação visual de quanto os gregos se mostravam convencidos das aplicabilidade universal do uso da razão na compreensão do mundo e na solução dos seus problemas, da astrofísica à ética. A palavra razão provavelmente não significava para eles o que significa para nós, e é também provável que não chegariam eles mesmos a um acordo sobre a natureza da razão. Nada disso importa. A escola de Atenas foi encomendada dois mil anos depois de Sócrates (e nada perdeu em ressonância quinhentos anos depois de ter sido concluída) porque, depois de um período de incubação em que não perdeu de fato a sua persuasão, o algoritmo grego da supremacia da razão moldou e engoliu o nosso mundo: das vacinas às constituições, do positivismo de Comte às exaltações de von Mises, do colonialismo às fábricas na China.
O que se perdeu ao longo dos milênios foram a ênfase e as ressalvas de gente lúcida como Sócrates e Diógenes: a consciência de que, formidável como é, a razão como ferramenta tem vulnerabilidades que, se não forem tratadas, podem invalidar todo o projeto da racionalidade.
Sócrates entendeu cedo que as pessoas podem com facilidade convencer a si mesmas de que estão agindo de modo racional, mesmo quando (ou particularmente quando) não é esse o caso. A razão é uma luz potente ao ponto de tender a cegar, mesmo em pequenas doses, o seu portador. Embriagado pelo esplendor inequívoco de uma área tocada pela luz, o portador da razão pode continuar a tropeçar em áreas inteiras que não chegou a iluminar.
Nesses casos o que deveria ser imparcial pode se mostrar tendencioso, e o discurso da razão pode servir para encobrir a irracionalidade. Para Sócrates, aberrações desse gênero são muito mais comuns do que se pensa, e pelo excelente motivo de que mesmo gente muito lúcida permanece ignorante daquilo que ignora. É muito mais fácil iluminar o mundo do que iluminar a si mesmo, pelo que o preço de empunhar a ferramenta da razão de modo idôneo deve ser constantes vigilância, autoexame e questionamento cruzado.
Para demonstrar o seu argumento, Sócrates saía pelo mundo (e o seu mundo era Atenas) questionando de modo inclemente uma convicção por vez, um cidadão por vez. Ele comparava o seu método àquele de uma butuca, que esvoaça ao redor, pousa em pontos vulneráveis, atormenta e punge até produzir uma reação definitiva e exasperada. Através de intervenções que brotavam de encontros casuais pela cidade, Sócrates foi revelando (e ficou conhecido por revelar) que mesmo as convicções que cremos mais embasadas e racionais podem não ter qualquer verdadeiro fundamento.
Meu caso preferido, como estou condenado a repetir, é o encontro de Sócrates com Eutífron, narrado por Platão num diálogo que traz o nome da vítima. Eutífron é um cidadão muito conservador e cheio de si, muito convicto da sua superioridade moral e da clareza do seu senso de justiça, que está para esbarrar com Sócrates e ter as suas certezas demolidas por ele. Encontram-se por acaso na fila para uma audiência com o magistrado, e o que começa como um bate-papo amigável e com pedidos aparentemente inocentes de esclarecimento da parte de Sócrates termina em um embate titânico e desigual. Sócrates desmonta cada uma das explicações pomposas de Eutífron a respeito da natureza da justiça, expondo até a medula a superficialidade, o caráter contraditório e ausência de fundamento das convicções mais caras do seu interlocutor.
Colocar em cheque as convicções é colocar também em cheque a conduta, é essa é uma barra difícil de gerenciar – especialmente para quem anda pela vida cheio de certezas. Eutífron acaba apelando a uma desculpa qualquer para fugir da fila, da conversa e do embaraço de ver exposta diante de si mesmo a sua ignorância. Os cidadãos atenienses aprenderam logo a evitar qualquer encontro com Sócrates, a butuca, e pelo mesmo motivo.
O método socrático de demolir convicções contém uma crítica feroz, e uma crítica de dentro, ao ideal grego da suficiência da razão. O caso de Eutífron é exemplar: de que modo alguém pode querer empunhar uma arma tão potente quanto a justiça, quando fica revelado que não sabe que não sabe em que se fundamenta o seu senso do que é justo? Podem os seres humanos, que não são em hipótese alguma racionais cem por cento do tempo, beneficiar-se de fato do projeto da racionalidade, ou terminarão por usar o discurso da razão como verniz para encobrir preconceitos sem qualquer base racional? O homem convicto da própria racionalidade se mostraria desse modo em tudo idêntico ao homem que se deixa guiar pela crença – com o agravante de que, ao contrário do crente, ignora a natureza de crença da sua convicção.
Acho formidável que alguém tenha escancarado, num momento tão distante da história e na própria Atenas dos filósofos, que o projeto da racionalidade requer uma capacidade de autoexame e de lucidez que os seres humanos não são capazes de prover por si mesmos. Requereria de fato uma multidão de Sócrates, Sócrates espreitando para despejar sobre nós o seu questionamento cruzado em todas as salas de espera, em todas as salas de aula, em todas as filas de votação, em todas as camas e em todos os comícios – isso quando a história toda do ocidente nos deu um único Sócrates, que foi eliminado pelo sistema precisamente pela sua prontidão em prestar esse tipo de serviço.
A vulnerabilidade no projeto da razão apontada por Sócrates nunca chegou a ser tratada, e continua a ser explorada e a causar danos estratosféricos nos nossos dias. Para entender basta folhear o Eutífron de Platão ou a timeline do Facebook: aquilo que estiver mais à mão.
Mas não demorou (Platão conheceu os dois) e chegou a Atenas um cabra que julgava que Sócrates não tinha sido cético o bastante em seu ceticismo, não tinha sido incômodo o bastante em seu caráter de butuca, não tinha sido pessimista o bastante em seu diagnóstico e não tinha sido diligente o bastante na sua busca por uma cura. Esse sujeito, como venho tentando dizer desde o início, foi Diógenes de Sinope.
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