Quando é hora de mudar de mundo é preciso decidir com muito critério o que levar para o próximo.
Você acorda hoje ponderando que esteja talvez para nascer uma realidade menos desfigurada pela neoliberalismo, um mundo menos propenso a entreguismos e privatizações e mais sensível aos ideais igualitários da esquerda. Não parece impossível, considerando que neste preciso momento ao redor do planeta todos ‒ indivíduos, populações e empresas ‒ estão recorrendo ao Estado como tábua de salvação, confirmando tacitamente a importância de públicas infraestruturas e instituições na garantia de estabilidade e dos ritmos mais essenciais da vida. Estado é uma ideia cheia de limitações, mas parte do pressuposto que todo mundo tem o mesmo direito a ser protegido, e isso é já mais a esquerda do que achariam aceitável Reagan, Thatcher, Trump e os ministros de Bolsonaro. Este é você otimista.
Não muda o fato de que você ontem acordou pensando que talvez esteja para nascer um mundo regido por um neoliberalismo ainda mais feroz, ainda mais propenso à desigualdade, à exploração, à destruição da natureza e à rapinagem dos direitos humanos e do trabalho. Parece provável, considerando que ao longo da sua história o capitalismo neoliberal tem sabido reverter crises de todos os gêneros ‒ políticas, sanitárias, climáticas, financeiras ‒ ao seu favor, tendo ele mesmo criado artificialmente um bom número de crises através das quais se beneficiar, saindo mais forte e aparentemente mais incontornável cada uma das vezes. Mesmo antes desta emergência um bom número de vertentes catastrofistas do neoliberalismo, como o aceleracionismo, estavam já operando; é difícil imaginar que, num ambiente com menos certezas, o capitalismo que vive de acentuar polaridades escolha o caminho da moderação. Este é você protegendo-se de expectativas que podem querer voltar mais tarde sob a forma de desilusão.
Suspeito que nenhuma dessas versões ‒ nenhuma dessas duas representações da realidade ‒ bastem para conter ou mesmo indicar a singularidade do mundo que está por vir, e que talvez já esteja sendo. Estas e outras análises que circulam dentro e fora de nós provavelmente pecam (como intui, por exemplo, o jornalista Bruno Torturra) por usar o vocabulário do antes para falar de um depois para o quais não talvez não existam ainda palavras para falar. Parecem análises mas de fato nada analisam, em que leem e pintam a realidade através de conceitos e categorias que viraram pó.
Hoje um amigo me disse que o mundo que está por vir será em nada diferente do que o anterior, e tomou por evidência o fato de que assim que o isolamento foi suspenso em algumas cidades europeias a população voltou em manada a encher o McDonald’s. O artigo em que meu amigo leu a notícia dizia também que a realidade por vir será ainda mais desigual e impiedosa do que a anterior, caracterizada pela tensão entre uma minoria com acesso ao consumo de ponta e uma maioria explorada e ressentida que não vai poder consumir quanto gostaria.
Confesso minha irritação com não-análises desse tipo. Que o neoliberalismo vai lutar para não perder terreno diante da emergência deve ser evidente. Não é análise: os sistemas que estão no topo usam as armas que estiverem à mão para sobreviver diante da competição, e nenhum sistema mostrou-se mais hábil a adaptar-se acentuando-se do que o capitalismo.
Minha impressão é que talvez seja já um engano, um enorme engano conceitual e de vocabulário, estruturar a questão ao redor do consumo ‒ como se fosse coisa certa e segura que consumo é o que as pessoas queriam na realidade anterior e aquilo que continuarão a querer na que está por vir.
Acho concebível que muita daquela gente que foi lotar as lojas do McDonald’s uma vez suspenso o isolamento o tenha feito (e o faremos todos) pela ânsia de reencontrar as estruturas e o ritmo familiar de um mundo que, no fundo e à margem da consciência, sabem não existir mais. Foram buscar uma experiência de consumo a fim de que como experiência ela se mostrasse insatisfatória, porque no isolamento ficou forçosamente demonstrado que insatisfatória ela sempre foi. As pessoas têm sede de reencontrar o mundo e sabem que no lugar da porta de saída encontrarão uma parede, mas o rito precisa ser realizado de qualquer forma.
Dito de outro modo, suspeito que as análises que circulam não tomem em consideração, não o bastante, o impacto futuro/imediato do trauma coletivo produzido pelo isolamento prolongado e sua moldura universal de privações, silêncios e baixas humanas.
11 de setembro de 2001 atravessou o inconsciente coletivo do planeta deixando uma marca potentíssima. Estou convencido que sem o 11 de setembro não existiriam como figuras viáveis gente divisiva como Trump, Salvini e Bolsonaro. Como evento, resumiu-se a um único dia; como evento, não teve consequências práticas e imediatas na vida de todo ser humano sobre o planeta. Bastou para fazer o giroscópio da sociedade planetária alterar-se para sempre, e estava concluído e amarrado em algumas horas.
Comparado ao trauma coletivo que está produzindo a passagem (talvez seja melhor dizer advento) do coronavírus, o trauma de 11 de setembro, ainda que tenha mudado o mundo e parido mundos, foi um risco imperceptível no verniz das coisas. Neste novo caso, as consequentes mudanças no giroscópio da cultura planetária serão acentuadas num nível que é praticamente impossível antecipar. “Sem precedentes” está reservado para momentos como este.
Se antes de ousar uma intuição eu pudesse apostar em uma ou duas coisas que me parecem certas, diria que vejo este como um período que (mesmo num nível inconsciente) as pessoas nunca irão perdoar. Ainda que tudo volte ao normal (não vai), o indivíduo trará para sempre consigo o rancor deste planetário, coletivo e compulsório confinamento/cárcere/retiro espiritual, por ter 1> removido publicamente a máscara de urgência e de inevitabilidade do capitalismo, 2> forçado cada ser humano a uma reflexão (mesmo quando, repito, num nível não consciente) a respeito daquilo que na vida é essencial e 3> levado aos limites e causado o clamoroso rompimento da máquina de distração da sociedade do espetáculo, forçando as pessoas a estarem pelo menos por alguns momentos consigo mesmas, algumas delas pela primeira vez.
São coisas que antes deste momento nunca tinham acontecido todas elas a todos, e coisas com esse grau de intensidade não tinham antes deste momento acontecido simultaneamente a todas as pessoas sobre a Terra.
O planeta está todo ele dentro do avião. Sempre esteve, mas pela primeira vez todos entreviram e entenderam, ainda que por um momento. Não importa a intensidade da dedicação com que voltaremos a buscar novas e melhores formas de distração: este momento, o fato de termos sido submetidos a ele, bastará para alterar/arruinar para sempre a experiência.
É como voltar de uma guerra, e de uma guerra ninguém volta. Não voltam os que dedicam o resta da vida ao ascetismo, não voltam os que dedicam o resto da vida à busca do prazer.
No Brasil, naturalmente, o trauma coletivo será exponencialmente acentuado pelo fato de que o país tocado pela pandemia está sendo gerido por um verme de proporções e natureza lovecraftianas, Aquele que Não Estando Vivo Conduz os Vivos à Morte, e pelo agravante de saber que Jair Bolsonaro foi colocado no poder quando não era um spoiler o fato de que ele folgava e traficava com a morte, e que um bom número de votantes escolheu alçá~lo ao seu lugar de poder precisamente por ele ter esse perfil.
De uma convulsão cataclísmica a esse nível seria impossível prever as consequências num nível global ou pessoal. Não acho impossível, se for para disparar baixo, que nos próximos anos o planeta se torne mais religioso do que é hoje, muito mais religioso do que críamos a esta altura possível, e que novas religiões sejam inventadas. Não acho impossível que nos próximos anos o mundo resvale numa espécie de feudalismo 2.0, conectado no digital e autárquico nos costumes. Ninguém pode descartar, naturalmente, o futuro decantado de uma sociedade global cada vez mais distópica, limitante e desigual, operando com base na conformidade, no rastreamento e na ultravigilância. Possivelmente será um mundo ainda mais estranho do que podem indicar essas previsões, um mundo totalmente alheio às comparações e categorias em que continuaremos tentar encaixá-lo.
O mundo que está por vir pode ser impossível de antecipar, mas não conheço nada que me pareça mais próximo de indicar o motivo provável que desenhará a natureza desse mundo, o seu provável fator determinante, do que a provocação de David Sarac:
Questões para uma recuperação pós-pandêmica:
> Como suprimir a sensação mórbida de desespero e mergulhar novamente na banalidade
> Como redescobrir a devoção à aquisição
> Como voltar a gozar com a distração
Postulo que será um mundo determinado pela impossibilidade coletiva e individual de voltar a gozar aquilo que nos fazia gozar antes. Uma variação ou antecipação desse sentimento cada um terá talvez experimentado a seu modo durante o confinamento: a desconcertante sensação, aparentemente definitiva, de ter se tornado incapaz de encontrar prazer num livro, num filme ou numa série cuja qualidade não está em discussão e cuja experiência nos teria assegurado acesso ao prazer antes.
Onde está o prazer que estava ali, e que fazia parte intrínseca de mim e do objeto que eu estava para consumir? Para onde desapareceu? Como eram de fato os motivos e as recompensas da vida antes da guerra? Quanto custa para consertar a máquina do prazer?
O novo mundo será talvez determinado, repito, pela experiência universal da incapacidade de reencontrar o gozo. Não estou dizendo que as pessoas não irão continuar a buscar ativamente a banalidade, a distração, o prazer da aquisição e todos os seus acessórios: é de fato provável que na maioria dos casos a impossibilidade de gozar conduza (ao menos ao início, quem sabe até o fim) a uma acentuação dessas práticas, numa tentativa nossa de compensar o que sentimos ou imaginamos ter perdido na negociação com o novo trauma.
Para dizê-lo de ainda outro modo, o advento do vírus quebrou o mundo que chamávamos de nosso, vivemos já nas suas ruínas e resta o paradoxo: permanecemos apegados àquele mundo e provavelmente tentaremos reconstruí-lo a todo custo, mesmo sabendo que ele não nos dava e não tem como voltar a dar o prazer que atribuíamos, engano nosso, aos méritos dele.