Se há um lição na história da humanidade é que confrontada com a escolha entre o aperfeiçoamento de si mesma e o aperfeiçoamento da tecnologia, a humanidade vai escolher a tecnologia.
David Sarac
Minha lembrança mais antiga de uma coisa (um objeto, em oposição às memórias de lugares e pessoas, que são mais antigas) é a lembrança grande e terrível de um rolo compressor ‒ um rolo compressor vermelho que vi pela rua na República da Cloroquina onde nasci, capital do Paraná.
A ideia de que pudesse existir uma máquina com uma potência tão devastadora e ao mesmo tempo um propósito concebivelmente benigno me fascinou e me aterrorizou, e terá determinado talvez todos os meus otimismos e pessimismos.
Fique claro, e digo a mim mesmo tanto quanto a quem ainda não terá notado, que um rolo compressor não tem propósitos benignos e não tem concebivelmente como ter. É a metáfora sem dissimulação da coisa usada para aquilo que foi criada: para destruir e passar o pano na mesma viagem.
O homem natural em mim é ainda muito capaz de deixar-se fascinar pelo poder de destruição do que quer que seja, e pode na mesma viagem ser convencido a crer, pela intermediação desse fascínio, que o poder para destruir pode ser usado para propósitos benignos.
O problema de catástrofes de desolação como Bolsonaro, como a pandemia e como o aquecimento global é que [1] a admiração perversa por aquilo que tem poder para destruir e [2] a fé implícita no poder criador e redentor da destruição estão embutidos na argila primata que usamos para moldar a nossa identidade.
Diante da catástrofe a reação “humana” é a paralisia encravada no centro geométrico entre o terror e a admiração. Aquilo que destrói demonstra poder, e fomos moldados e selecionados ao longo de milênios para ao mesmo tempo desejar e nos dobrarmos diante do poder.
O poder de não desejar o poder e o poder de não encontrar qualquer prazer na destruição são produtos culturais refinadíssimos e raros. Requerem um imaginário alternativo e uma cultura alternativa, sofisticações que se contraponham à vertente humana usual de exploração e espoliação.
As culturas humanas que não cultuam o poder recorrem a disciplinas custosíssimas e a vastas mitologias tutelares de modo a driblar a persuasão dessas linhas internalizadas de programação. E, naturalmente, correm o risco perene de serem aniquiladas pelo rolo compressor das culturas que cultuam o poder e a destruição.
A reação possível a catástrofes como a climática terá portanto de ser xamânica, ou encantada, ou indígena, ou cultural, ou espiritual ‒ ou será resposta nenhuma, permanecendo baseada na velha fixação ocidental pelo poder e no fetichismo da esperança na criatividade da destruição.