E falar de Diógenes de Sinope é entrar no terreno de uma espécie curiosa de spoilers, aquelas revelações que podem arruinar a experiência de quem está se aproximando de uma história pela primeira vez. Neste caso a experiência é arruinada retroativamente, visto que o leitor acaba entendendo que foi Diógenes (404-323 a.C.) a introduzir pela primeira vez na história ideias que foram recicladas em inúmeras narrativas posteriores.
Diógenes é metade Jesus de Nazaré, metade João Grilo, metade Cristiano Barba. Um provocador que trolava as palestras de Platão na academia, um mendigo que não se deixou impressionar diante de Alexandre, o Grande, um filósofo cínico atento às lições de crianças e de animais, um sem-terra que caminhava pela vida como senhor do seu mundo, um performer que no berço mais totalizante da cultura ocidental vivia profeticamente como índio, por entender que a resposta razoável ao projeto da razão era precisamente desejar uma outra coisa. Diógenes de Sinope é a demonstração de que José Fabro é baseado em fatos reais.
Sócrates havia diagnosticado que para rodar sem erros o programa da racionalidade exigiria um exame perpétuo das convicções de cada um. Achando pouco, Diógenes entendeu que a racionalidade requer uma revisão completa das convenções sociais que regem a vida de todos. Sócrates tinha pedido uma depuração rigorosa dos motivos; para Diógenes, necessária era uma depuração rigorosa da conduta.
Porque sua sacada reside inteira aqui: o programa da racionalidade não pode rodar só com palavras, ainda que sejam as palavras certas, porque os conceitos se deixam corromper e o programa derrapa em toda sorte de contradições se o modo em que vivemos não for submetido ao mesmo escrutínio.
Daqui nasce caráter de outsider de Diógenes, e sua forte desconfiança em relação ao método e à lucidez dos demais filósofos. Seu alvo mais caro e frequente foi seu contemporâneo Platão, em quem via um falastrão pretensioso, pronto a examinar num nível conceitual as abstrações mais afastadas da realidade, mas não a examinar com a mesma diligência os vícios de pensamento por trás dos próprio comportamento ou das convenções da sociedade.
Para Sócrates os discursos humanos carecem em geral de lucidez, e essa falta termina por nos prejudicar. Para Diógenes, a lucidez dos discursos é em qualquer caso enganosa: não há como se saber a partir de palavras, por mais bem amarrado que seja um raciocínio, o quanto são claras e coerentes as ideias de uma pessoa. Para entender e chegar ao coração transformador da coisa, se é que existe, é preciso atentar ao modo como se vive. Sem um comportamento que corresponda em lastro à racionalidade, os discursos nos sabotam e nos prejudicam mesmo quando temos razão.
É nessa toada que Diógenes repreende seu amigo Hegesias, que estava tentando convencê-lo a emprestar-lhe um livro seu: «Mas que estupidez, Hegesias! Quem está com fome não vai atrás de figos pintados: quer figos de verdade. Já você está deixando passar a prática genuína da virtude para correr atrás daquilo que está meramente escrito».
Dentro da mesma lógica, aquela da insuficiência inerente ao discurso e às palavras, Diógenes ataca continuamente os oradores do seu tempo, «ansiosos que são para falar corretamente, mas sem qualquer pressa para agir com correção».
Bastam esses dois tenros exemplos para ficar marcado que esse filósofo do cão era intransigente onde todo mundo transigia.
Diógenes não entendia como gente que se afirmava inteligente podia viver ignorando o que estava diante dos olhos: que muita coisa que a sociedade considera natural ou racional é fruto de condicionamento e de preconceito, não de racionalidade ou de reflexão. A ele parecia evidente que a demonstração mais clara de inteligência e de independência intelectual é viver desafiando os preconceitos entranhados na sociedade e em nós mesmos.
Tudo que fazia, e tudo pelo que é lembrado pelos seus biógrafos (diz-se que escreveu muito, mas nada de seu chegou diretamente até nós) é performance estudada para denunciar conformismos e condicionamentos.
E, spoiler: o preconceito mais insidioso, a farsa mais universal, o engodo mais irracional e a mentira mais danosa eram para Diógenes a ideia de que é preciso de muita coisa para se viver.
Sua característica mais distintiva e controversa era sua frugalidade: Diógenes fazia espetáculo de viver com pouco e procurava viver com cada vez menos, e insistia que esse minimalismo era parte essencial do seu projeto de racionalidade.
Sem teto, vivia num grande vaso arruinado que alguém havia largado num canto da cidade (nas pinturas que se fizeram dele mais tarde, sua casa parece a gruta natalina de uma sagrada família de uma pessoa só, emoldurada por cães vira-latas em vez de bois e ovelhas). Seu guarda-roupa e sua cama estavam contidos os dois na mesma peça de roupa, o manto que – com a possível exceção de alguns livros e material para escrever – esgotava num único item a sua lista de posses. Por algum tempo tinha carregado consigo também a cumbuca que usava para beber, mas depois de ver uma criança bebendo água usando somente as mãos entendeu de descartar imediatamente a cumbuca como supérflua.
Nessa frugalidade reside sua mais feroz crítica à cultura e à sociedade. Divulgando spoilers de Jesus de Nazaré quatrocentos anos antes do seu nascimento, Diógenes questionava continuamente a lucidez de quem coloca a sua confiança nas riquezas, insistindo profeticamente que «o amor ao dinheiro é a metrópole de todos os males».
Deliciosamente, o primeiro item da biografia de Diógenes (o seu primeiro milagre, por assim dizer) é o fato de ter tido de escapar de Sinope, sua cidade natal na Turquia, pelo crime de desfiguração de moeda, a prática de depredar deliberadamente o dinheiro até fazê-lo perder o valor. O milagre só ganha em magnitude e em subversão quando os biógrafos esclarecem que Hicésio, o banqueiro da cidade, era seu pai. Tiveram de buscar exílio juntos em Atenas.
Seu primeiro ato público estava já, portanto, carregado de performance. Desfigurar o dinheiro até privá-lo de valor é naturalmente denunciar o fato de que dinheiro não tem na realidade qualquer valor, e (para Diógenes isso é particularmente importante) é irracional agir como se tivesse.
Os filósofos de Atenas estavam em geral muito prontos a questionar a fé popular nos deuses, mas a sua fúria iconoclasta não se estendia a bezerros de ouro como os privilégios de um nascimento nobre ou o valor do dinheiro. A ideia que Diógenes tinha de lucidez era muito mais intransigente: a fim de manter a sua integridade a razão tinha de operar livre de todo condicionamento social e de todo preconceito (porque condicionamento e preconceito são efetiva irracionalidade). A noção do valor do dinheiro ou da legitimidade da riqueza adquirida por herança têm tanto ou menos fundamento racional quanto a fé nos deuses, pelo que convinha questioná-los com a mesma intensidade. Promover violência ativa contra a moeda e viver recusando-se a acumular faziam portanto parte da mesma visão civilizatória: eram parte essencial da cura que Diógenes propunha para as vulnerabilidades no programa grego da supremacia da razão.
Na realidade a segunda parte da sua biografia, a vida de frugalidade e desalinho no exílio em Atenas, é evolução natural da primeira, aquela da violência ativa contra a moeda em Sinope. Porque como entenderam todos os índios do Xingu da história, de Jesus de Nazaré a Gandhi, viver recusando-se a acumular é também promover efetiva e revolucionária violência contra a moeda: é denunciar publicamente a farsa da sua centralidade e derrubar publicamente o dinheiro do seu status de divindade. E, naturalmente, nada é mais irritante para o sistema de Mamon do que ver o seu deus desafiado, despojado do seu falso poder e vencido por gente que não tem onde cair morta. Mamon não conhece prioridade maior do que matar índios. A segunda é desarmá-los, convertendo-os à religião da acumulação e do dinheiro.
Antecipando por mais de dois mil anos o pensamento de anarquistas como Jacques Ellul, Diógenes entendia que a ânsia humana por acumular é insana e irracional em inúmeros níveis, mas particularmente em que acumular é uma afronta à liberdade.
Do mesmo modo que é não é razoável encerrar-se dentro de uma cela para proteger-se do mundo e ao mesmo tempo desfrutá-lo, é irracional perseguir riquezas e bens para esperando experimentar segurança e satisfação: o método e a recompensa são os mesmos. Diógenes preferia assumir o modo de vida que associava a Hércules, o herói impávido que navegava o mundo fazendo a coisa certa em favor de gente de todas as origens, sem esperar recompensa, e não apreciava coisa alguma mais do que a própria liberdade.
Ser plenamente humano, nessa visão, é dar valor ao que tem valor, e não deixar-se impressionar pelo falso brilho de todo o resto. Como quando Alexandre, o Grande, atraído pela reputação de Diógenes (e não vice-versa, fique claro), desviou o seu percurso e alterou a sua agenda de modo a poder encontrá-lo pessoalmente. Pronto a conceder ao filósofo algum favor digno da sua singularidade, o imperador disse a Diógenes de pedir-lhe alguma coisa, qualquer coisa.
«Vá um pouco pra lá», foi o pedido, «que você está cobrindo o meu sol e quero pegar um bronze» – em que fica demonstrado que Diógenes foi um digno antecessor também do gênio anárquico de Groucho Marx.
Sentado sozinho e descalço na escadaria da Academia de Atenas, Diógenes refletia que era uma afronta à razão e ao potencial humano que mais gente não escolhesse uma vida de independência selvagem como a sua. Num episódio que virou meme mesmo na antiguidade, saiu por Atenas empunhando uma lanterna acesa em plena do dia. Quando perguntavam que diabo estava fazendo, a resposta estava pronta: «Procurando um ser humano».
Perguntado em outra ocasião porque as pessoas dão aos mendigos e não aos filósofos, Diógenes deitou esta: «as pessoas acham que podem um dia chegar a ser cegos ou aleijados, mas não esperam chegar a ser filósofos».
Essas anedotas contém elas mesmas a sua medida de spoilers. O filósofo mais independente da história se sentia na realidade sozinho, uma figura trágica e solitária como Hércules. Sua lanterna trazida à luz do dia iluminava o que ele não tinha como ignorar: que transformar o mundo requereria toda uma multidão de gente disposta a desafiar os condicionamentos da sociedade. Requereria toda uma comunidade de filósofos cínicos, um batalhão de Diógenes soltando tiradas de Grouchos Marx, um mar de gente praticando violência contra a moeda.
Numa palavra: spoilers.
- Um Sócrates que desatinou
- Os antivírus da razão
- A violência contra a moeda
- O vírus e a violência contra a moeda