No terceiro livro da Mundiceia está escrito que dos recursos a que não têm acesso os que têm poder, aquele que fere mortalmente o rei da morte é a alegria. É por isso que o monarca da morte não chega e não ousa chegar sem ser anunciado. Ele tem de providenciar que todo traço de alegria seja destruído antes de se aproximar. Seus tristes emissários da destruição o precedem, e seu modo de operação é continuamente dizer (e mais cedo ou mais tarde fazer) toda sorte de coisas grotescas, brutas, mesquinhas, violentas e totalmente privas de humanidade. Empunhando o inaceitável como se aceitável fosse, os tutelares do ódio procuram interromper as generosidades, representar como absurdos os abraços e silenciar as danças. Sua tarefa é produzir a perplexidade que baste para conseguir.
O pontífice da morte caminha sem medo entre a cinza e a gente dessa terra devastada, porque não espera encontrar diferença entre uma coisa e outra. Depois da passagem desumanizante dos seus vermes, não espera encontrar ninguém inteiro e nenhuma integridade. Com algum fundamento, considera a ameaça da alegria anulada diante da difusão da liturgia do ódio, do estrépito da civilidade rompida e do silêncio deixado pelos companheiros mortos.
Mas o núncio da morte permanece vulnerável à alegria. Quatro ou cinco notas de cavaquinho, que não se sabe ainda para qual samba querem se abrir, bastam para fazer com que ele se dobre publicamente, publicamente varado de agonias e dores. O servidor da morte é apanhado sempre de surpresa pela persistência da integridade na alma das gentes e pelos afetos dourados que sobrevivem à devastação que ele não cessa de promover. Como a alegria ameaça a integridade da própria morte, bastam aquelas quatro ou cinco notas para que os tutelares do ódio iniciem em sua defesa o mais fechado tiroteio. É um esforço sério e desesperado: eles sabem que sua sobrevivência depende de que evitem a todo custo que aqueles acordes se transformem em canto, que aquele convite à alegria se transforme em cordão.