Esta é a parte 4 de 4 da série A violência contra a moeda

A cidade que se abre por trás da porta depois de dois meses de reclusão é em cada detalhe arquitetônico igual àquela que estava aqui, mas os primeiros passos instruem sem pudor que não somos mais os mesmos, a cidade e eu. Nada mais é como era: a pandemia revelou que uma de nossas versões é necessariamente falsa, resta decidir se esta ou a anterior.


O pecado original de Diógenes de Sínope, aquele de desfigurar a moeda até fazê-la perder o valor, de modo a denunciar que nunca teve valor em primeiro lugar, é rito que foi repetido de diferentes modos em diferentes momentos da história. O impacto dessas performances foi em alguns casos nada menos do que extraordinário, e o Diógenes encantado por Rafael veio me procurar em Milão pra me dizer de refletir sobre essas coisas por tudo sertão sagrado.

Violência contra a moeda é toda prática deliberada de distribuição de justiça não intermediada pela dinâmica da riqueza. É violência contra moeda porque coloca em dúvida a primazia, a necessidade e a própria justificabilidade da riqueza.

Resta o fato, e a reviravolta, de que a violência contra a moeda por certo nunca foi praticada em tão larga escala, e por certo nunca de modo tão inadvertido ou subconsciente, quanto – agora, o momento em que uma epidemia global encontrou pela primeira vez um planeta organizado numa configuração global.

Não é por pouco que os capitalistas do mundo inteiro estão urrando em uníssono exigindo a imediata retomada do consumo, do giro usual da economia e das modalidades operativas de ganância, competição e avidez que caracterizam a seu ver a normalidade. A epidemia está desencadeando no mundo episódios planetários de violência contra a moeda, com a consequente revelação para o mundo inteiro de que a moeda não tem qualquer valor intrínseco em primeiro lugar. Os capitalistas não temem o prejuízo; temem o que o desempenho continuado do rito pode ocasionar.

Quem poderia imaginar que o giro continuado do capitalismo requereria o giro continuado da morte.


O pé na cidade desliza, a mente inteira pisa a realidade da poesia de Borges. Tudo rima com Bairro recuperado: os habitantes da quarentena fomos todos privados de conhecer a beleza da cidade até sermos privados dela.

Num país em que as cidades são tão antigas que, como resultado da acumulação natural de histórias de conquista e reinvenção, a contradição é determinante de toda arquitetura e de toda cultura regional, esta cidade de contradições escolheu as suas.

Milão é a menos italiana das cidades italianas, sendo essa a sua identidade e o seu projeto. Cidades como Nápoles, Bolonha, Parma, Palermo e Florença querem em geral ser o mais italianas que conseguem, defendendo cada uma a seu modo versões muito diferentes do que isso quer dizer. Milão quer ser cidadã do mundo.

Andando a pé o cabra vai desfiando os nós e sinapses de uma que na verdade são três cidades ocupando o mesmo espaço ao mesmo tempo: a Milão do século 19, aquela que congelou em torno a 1972 e aquela que pertence ao ano 3000. Milão se pudesse seria toda inteira esta última, uma ininterrupta praça Gae Aulenti com arranha-céus moderníssimos dançando plasticamente no reflexo de lâminas d’água, uma fotografia que pertence ao centro de Sydney enxertada num velho álbum de fotografias italianas.

Essa cidade ultramoderna é aquela da bolsa de valores italiana e das entidades financeiras, a cidade do Quadrilátero da Moda, em que Versace peleja com Armani aos pés de Tom Ford; é a cidade que existe para o Salone del Mobile, o festival de design e movelaria mais badalado e almofadinha do planeta.

É a cidade que ofereceu ao governo Bolsonaro o mote da campanha natimorta O Brasil não pode parar: em italiano a reza era Milano non si ferma/Milão não para.

Cidade das mais frenéticas da Europa, Milão acabou parando por dois meses com o resto do país, tendo se revelado uma das mais atingidas pelo vírus.

No fim das contas Milão podia parar. Não parava porque podia.


A historiadora Nicole Hemmer pede que não esqueçamos que é um importante ato político se com o advento da pandemia quase metade da população do planeta decidiu alterar radicalmente o seu modo de vida de modo a não ser contagiado e a salvar a vida das outras pessoas. Fato é que esse ato coletivo de colaboração só foi possível diante de um ato político ainda mais desconcertante, a decisão subjacente de exercer violências institucionais contra a moeda (e sua enteada, a propriedade) com o intuito de preservar a estabilidade política e a viabilidade das relações humanas e produtivas.

Os aspectos mais desnorteantes da reação global à pandemia foram talvez esses dois: de um lado, a pausa (tida desde sempre como impossível: il capitalismo non si ferma) aplicada ou imposta aos ritmos de consumo e de produção do capitalismo neoliberal; do outro, o modo como os Estados assumiram sem cerimônia um papel ad hoc na distribuição de recursos e riquezas.

Esses fatos encarnam, cada um a seu modo, episódios muito marcados de violência contra a moeda; sem o advento da epidemia é muito provável que nenhum ser humano vivo chegaria a experimentar a aplicação de uma coisa ou outra em seu próprio país. Que tenham acontecido ao mesmo tempo e em escala planetária pertence ao terreno do mitológico.

Sacramento que pode ser executado de várias formas, a violência contra a moeda envolve em todos os casos agir como se o dinheiro não fosse importante ou necessário no desenrolar das atividades e relações humanas. Como resultado da presente crise a maior parte dos Estados do planeta passou em alguma medida a operar, durante um intervalo que pode não ter ainda terminado e como se nada fosse, debaixo desse radicalíssimo pressuposto.

Renda universal, acesso universal aos sistemas de saúde, confinamento compulsório, linhas de crédito a fundo perdido, redução da produção a artigos essenciais, fechamento do comércio, queda do valor do petróleo a valores negativos ‒ cada uma dessas medidas e ondas de choque representam violência contra a moeda, em que partem do pressuposto de que aquilo que é humano, inclusive a estabilidade democrática, pode ser preservado por um período mensurável de tempo à parte do tráfico usual intermediado pelo dinheiro.

O capitalismo viveu pra ver essas coisas e está por certo decidido a sobreviver a elas. Mas tem pressa, o vírus não.


A cidade que nos últimos cem anos escolheu perseguir o emblema da superficialidade – capital da moda e do design de um lado, sede das flutuações esotéricas da bolsa de valores do outro – já viveu vocações muito diferentes em suas prévias encarnações.

Capital do império romano do ocidente entre 286 e 402 d.C., foi em Milão (que naquele tempo se chamava Mediolanum) que o imperador Constantino, convertido fresco ao cristianismo, colocou no ano 313 o seu selo sobre o Édito que leva o nome da cidade, e estendia aos cristãos o direito ao culto e à propriedade.

A estátua de Constantino assombra hoje em dia os traficantes e turistas no pátio diante da Basílica de San Lorenzo, uma das igrejas mais antigas da Itália, que por ocasião da sua construção era o maior edifício planejado do ocidente (tendo se tornado inspiração para a Hagia Sophia em Constantinopla e para a catedral dos pardais em Game of Thrones), e permanece lugar de inequívoca magia metafísica.

A Milão do culto ao supérfluo é também, e aqui reside a maior reviravolta dessa história, a cidade do ministério e da radioatividade residual de Santo Ambrósio (339-397), pai da igreja, eminência parda do imperador Teodósio, tutor do imperador Graciano, fundador do rito ambrosiano exclusivo à diocese de Milão, célebre inventor da ideia de ler sem dizer as palavras em voz alta e coach de Santo Agostinho, a quem provavelmente batizou.

Primeiro líder cristão a usar o lastro político da Igreja de modo a extrair posições anti-judaicas e anti-pagãs dos imperadores romanos (adquirindo desse modo mais lastro político para a Igreja), foi através da força gravitacional Ambrósio de Milão que o cristianismo se tornou de facto religião dominante e para todos os efeitos estatal.

A esses traços protofascistas se sobrepunham em Ambrósio traços protocomunistas: nascido em família romana ilustre, o arcebispo de Milão adotou para si uma vida de estrita frugalidade e tornou-se crítico contumaz da desigualdade na distribuição de riqueza na sociedade romana – mostrando-se talvez a primeira figura política influente na história do ocidente a articular e publicar críticas dessa natureza.

A originalidade de Ambrósio está em sustentar que a caridade tradicional ‒ a ideia de dar esmolas e fazer doações aos pobres, àquela altura já muito entranhada na cultura cristã ‒ de um lado não basta, de outro não representa de modo adequado as dinâmicas da desigualdade em primeiro lugar. Mil e quinhentos anos antes que Proudhon rezasse que propriedade é roubo, Ambrósio postulava que mesmo se os ricos dessem tudo o que têm aos pobres, como Jesus encorajava que fizessem, não haveria mérito nessa transação: estariam apenas devolvendo o que tinham roubado em primeiro lugar:

A terra foi criada para todos como bem comum, para os ricos e para os pobres. Por que vocês, ricos, arrogam para si o direito à propriedade da terra?
A natureza, que gera todos igualmente pobres, desconhece os ricos. Não nascemos vestidos, não vimos gerados com ouro e prata.
Quando dá a um pobre você não está dando do que é seu, está devolvendo o que pertence a ele. Você é quem havia usurpado o que é comum, aquilo que foi dado para o comum benefício de todos.

Dito de outro modo, se propriedade é roubo, num mundo desigual a justiça se efetua através da violência contra a moeda.


Enquanto no Brasil reina a morte literal debaixo do jugo neofascista (e aqui na Itália muita gente sabe apreciar a inexistente ironia de que tanto Bolsonaro quanto Moro sejam de origem italiana, e que Moro tenha decalcado a Lava-Jato a partir do desastre que foi na década de 1990 a matriz nacional Mani Pulite/Mãos Limpas), o resto do mundo surfa a pandemia na lâmina entre o isolamento e a reabertura, e nesse limbo continua a operar, ao mesmo tempo instável e firme, o regime emergencial de violência contra a moeda. Na tentativa de preservar todo o resto, e partindo da ideia que é todo o resto que conta, os Estados continuam a queimar o dinheiro que não têm, o dinheiro que ninguém sabe exatamente a esta altura a quem pertence, abrindo vertentes de dívidas que ninguém faz ainda ideia de quem vai conseguir não pagar. Tudo isso, incrivelmente, parte de um acordo não-expresso, parte do esforço coletivo de tentar oferecer a cada indivíduo sobre a terra, dos mais miseráveis aos mais bem servidos, uma experiência comum: a experiência de chegar ao outro lado do vale da pandemia com alguma coisa da vida anterior, particularmente a vida ela mesma.

A pandemia, a terrível pandemia, dobrou por um vertiginoso intervalo o capitalismo a praticar a violência contra a moeda na tentativa de prover a cada pessoa uma experiência comum ‒ isto é, uma experiência não definida pela moeda, não definida pelo mérito e não definida pelo consumo. Que se trate da experiência mais rasteira e mais básica, aquela da sobrevivência, apenas acentua a força da metáfora.

Importa pouco se medidas como renda universal ou acesso universal aos sistemas de saúde se mostrarão (como é mais do que provável) temporárias, ou se são motivadas pelo egoísmo puro e simples 1A estratégia, naturalmente, pode ser proteger os mais vulneráveis somente de modo a minimizar, e numa escala que baste, o risco de que o contágio deles chegue a afetar de algum modo os mais privilegiados.. É já assombroso o bastante que tenham sido colocadas em operação, considerando quanto era importante para o discurso dominante insistir que medidas igualitárias e equalizadoras do gênero transitavam entre o irrealizável e o indevido.

Nos Estados Unidos houve hotéis que abriram as portas para acolher moradores de rua, de modo a possibilitar a mais gente as medidas de higiene e de isolamento necessárias à contenção do vírus. Na Itália o governo estendeu o auxílio emergencial de 600 euros ao mês aos profissionais do sexo, impedidos que estavam, como todo mundo, de trabalhar. Leitos de hospitais privados foram disponibilizados ao público, abriram-se linhas de crédito universais a fundo perdido, inúmeros países decidiram oferecer auxílio emergencial universal mesmo quando a medida requereu imprimir dinheiro ‒ sendo esse último o episódio mais literal de violência contra a moeda, mas faziam parte do mesmo sacramento cada uma das medidas anteriores e outras correlatas.

A questão que se deve queimar na retina é esta: se medidas equalizadoras dessa natureza foram consideradas justas e cabíveis durante a crise, o que impede ‒ exatamente o quê impede ‒ que sejam consideradas justas e cabíveis no quotidiano? Pisamos o mundo anterior e pisamos o entremundos ‒ e o spoiler é que pelo menos um dos dois é uma farsa. Cabe daqui em diante ponderar continuadamente, como quem teve uma visão em que viu o céu aberto, os comos e os porquês.


Caminhando ao longo de um dos canais de Milão, guiado pela da lua cheia que toca Villa-Lobos no seu violão, encontramos três restaurantes abertos: uma sorveteria, um bar e uma loja de iogurte grego. Em cada um desses lugares as mesinhas desapareceram, tanto as internas quanto as externas, e o balcão de atendimento mudou de posição, passando a servir de barricada diante da porta. O balcão agora impede a entrada: você pode até comprar, mas tem de consumir em outro lugar. Para uma cidade que se orgulha de ter contribuído para a invenção da happy hour (que aqui se chama aperitivo), uma noite sem barzinhos abertos é uma noite perdida; não por nada, mas é porque nos aperitivos que se encontram e fecham os negócios.

Esta é a zona mais badalada da cidade, e uma noite bonita e fresca dessas traria a mundiça para a rua mais do que a festa de São Francisco em Canindé. Hoje, ninguém: The Walking Dead, Itália. O movimento que vi foi o garçom do bar caminhando até a loja de iogurte grego para gritar da calçada ao proprietário: “Ainda não decidiu fechar a lojinha? Hoje não vem ninguém, não!” E deram muita risada os dois, por trás de suas máscaras.

Quando paramos numa ponte para espiar bem a lua antes de voltar para casa, o italiano que me acompanhava contou que tinha causado furor a edição daquele dia (6 de maio de 2020) do jornal católico Avvenire, debaixo da manchete Lavorare meno, tutti/Trabalhando menos, trabalham todos.

‒ O que causou espanto ‒ ele disse ‒ é que o artigo recupera um mote e uma causa que décadas atrás eram da esquerda italiana. A ideia era reduzir o desemprego e combater a disparidade na distribuição de renda, e propôs-se então diminuir a jornada de trabalho de 40 a 36 horas por semana. Depois se pensou em 30, com uma transição para 20. Trabalhando menos, trabalham todos. Na década passada foram trazidas a essa discussão as ideias de Latouche sobre remanejar os padrões de consumo e de produção na busca de um futuro sustentável. A manchete do Avvenire traz de volta essas reflexões: se antes da pandemia já se falava em decrescimento planejado, o decrescimento pode ter se tornado uma necessidade moral. Isso pode envolver não só menos trabalho, mas intervenções como renda básica. E repito: o que causou espanto foi a discussão ter sido trazida à tona por um jornal católico.

‒ A Igreja está neste momento mais à esquerda do que a esquerda ‒ ele disse antes que eu pudesse dizer.

Na volta para casa passamos na frente do monumento, não longe da Basílica de San Lorenzo e da estátua de Constantino, em que o município de Milão pede perdão pelo suplício do comissário da saúde Guglielmo Piazza e do barbeiro Gian Giacomo Mora, cuja barbearia ficava onde está agora o monumento. Por ocasião da peste de 1630 Piazza e Mora foram publicamente torturados, executados e tiveram em seguida os corpos queimados, acusados (sem qualquer fundamento, como ficou depois claro) de besuntar “óleos pestíferos” nas paredes e maçanetas da cidade, com o suposto propósito de contaminar os cidadãos e enriquecer com o espólio dos mortos.

Naquela noite sonhei que as curvas de todos os gráficos cresciam tão exponencialmente que tinham encontrando modo de transcender o limite do papel e das telinhas. As curvas dos gráficos faziam agora parte da realidade quotidiana: eram como montanhas na paisagem, tão altas que o topo não cabe na foto, ondas tão monumentais que nunca chegam a quebrar.

Notas

Notas
1 A estratégia, naturalmente, pode ser proteger os mais vulneráveis somente de modo a minimizar, e numa escala que baste, o risco de que o contágio deles chegue a afetar de algum modo os mais privilegiados.
Posted by:Paulo Brabo

@saobrabo ◂ Escrevo livros, faço desenhos e desenho letras