Um manual semiárido para o eleitor nos tempos do cólera
É irrazoável acreditar que seja possível convencer 50 milhões de eleitores brasileiros a votar em Fernando Haddad de modo a driblar o marcão Jair Bolsonaro e estancar a sua promessa declarada de guerra civil, ditadura e morte de inocentes – mas ser razoável não é o método nordestino.
Alguns defensores da democracia, tendo tomado os partidários de Bolsonaro por causa perdida, se lançaram à tarefa de conquistar com paciência e com a clareza dos fatos os votos brancos e nulos – mas convencer através de argumentos também não é o método nordestino. Sendo antes de tudo um forte, o nordestino espera a mesma sorte de independência inegociável da pessoa com quem está tratando. Entende que procurar convencer um interlocutor da superioridade da sua própria opinião é coisa ao mesmo tempo ordinária e contraproducente. Eleitor de Bolsonaro nasce picareta não: é falta de amor. Cada interlocutor, que tem mil motivos para pensar do jeito que pensa, é que deveria concluir por si mesmo e sem constrangimento externo o acerto da postura do nordestino, diante das mil novas razões para mudar que essa postura lhe apresenta.
O nordestino não pode ser convencido a convencer, mas ser cativante é o seu estado natural. O nordestino tem o dote de cativar até mesmo quem não concorda com ele, e a mágica está em que o cabra conquistado passa a habitar uma nova realidade. O nordestino caminha pelo mundo sem grandes preocupações e sem grandes ilusões porque entende coisas do tipo: se um calango como Bolsonaro pode cativar o seu eleitor, qualquer um pode. Você pode não conseguir fazer o seu interlocutor gostar do PT (sendo que gostar do PT é pedir muito até mesmo pra muita gente que pende para a esquerda), mas pode bastar desativá-lo da sua fúria – de modo a que o cristão entenda por seus próprios meios que Bolsonaro é arriscado, desatinado e perverso demais para merecer o seu voto no segundo turno.
Eleitor de Bolsonaro nasce picareta não: é falta de amor. Extraído do Auto da Compadecida, registro aqui o método nordestino para se desativar um eleitor de Bolsonaro, um de cada vez – com resultados visíveis em apenas três aplicações.
1. Chegue desarmando com a abordagem zero condenação
O eleitor de Bolsonaro entendeu que faz parte do pacote ser rotulado de fascista, racista e homofóbico, e espera como primeira coisa ser massacrado por posições desse gênero. Ele sabe que apoiar candidato que se coloca do lado dos “especialistas em violência” requer um mínimo de truculência e de desumanização, pelo que não está exatamente pronto para ser tratado como ser humano. Chegue batendo pesado por aí, e faça recusando-se a bater: seja do primeiro instante até o último só sorriso e leveza, toda galanteria e zero condenação.
Essa de chegar sem condenar é o tipo de coisa que o nordestino faz naturalmente: não por se considerar melhor do que os outros, mas precisamente por não ignorar que ninguém é melhor do que ninguém. O nordestino por princípio a ninguém recusa e espera civilidade de cada um, não por acreditar numa moral estrita irresistível e universal, mas porque lhe parece evidente que todos conhecem igualmente a tentação da incivilidade. Se todo mundo é mais ou menos uma farsa, é só a seriedade em excesso que precisa ser continuamente ignorada, desmoralizada e não levada a sério, pelo mal muito evidente que pode fazer.
2. Faça o cabra concordar com você em alguma coisa, qualquer coisa
Está em todos os manuais de venda do mundo, e você vive esquecendo. Para trazer o sujeito para o seu lado é preciso trazer o sujeito para o seu lado, e isso se faz apostando no certo, na humanidade comum.
Uma coisa é chegar com a voadeira no peito, aquilo que vem natural tipo “aqui rapidão, você eu não esperava apoiando racista, misógino, defensor da tortura, do estupro e da ditadura, olha logo você”. Ninguém merece ser abordado com a premissa não temos nada em comum, ainda mais se é essa é a abordagem que você condena no sujeito de que está se aproximando. O excesso de rigor do eleitor de Bolsonaro pode ser desarmado também nessa frente, pelo método de tratar as suas posições mais extremas com rigor nenhum.
Analise o terreno, espere o momento e reivindique com toda a simpatia um terreno comum. Um “vem cá, vamos concordar que o Bolsonaro é um tremendo de um canalha” pode fazer maravilhas. Se o cabra concordar com você (e ele vai concordar com você se entender pelo andar dos procedimentos que você não o condena pela sua posição) vocês já tem terreno comum e podem começar a conversar. Não é pouca coisa alguém reconhecer que está votando num canalha; ele vai procurar justificar o extremo da sua posição e você vai continuar sem condenar, concentrado na tarefa de trazer à superfície terreno comum.
Se não funcionar de imediato não desista. Pergunte a opinião do sujeito sobre alguma proposta de Haddad (informe~se) em áreas de interesse universal como previdência, impostos, direito do trabalho e investimentos em educação. Ouça o cabra com paciência e respeito até conseguir fazer com que ele responda afirmativamente a uma pergunta sua – mas é importante que seja uma pergunta, que seja feita em regime de cumplicidade (humanidade compartilhada) e que ele responda afirmativamente. “Cá entre nós, a ideia do Bolsonaro de ensino à distância é ridícula. As propostas de Haddad para a educação são muito mais embasadas, você concorda comigo”.
Como estratégia de venda e como instrumento de aproximação, a abordagem da cumplicidade acordada funciona pela força irresistível e paradoxal da autodepreciação: estabelece uma conexão pelo mais baixo denominador comum. Ela parte do pressuposto de que se você chegar se apresentando como o baluarte irrepreensível de todas as virtudes o seu interlocutor vai se sentir convidado a gerar imediatamente a mesma muralha protetora (fictícia como a sua), impossibilitando na prática qualquer contato e qualquer avanço.
Seu método é articular uma variação do apelo “vamos deixar de fazer de conta de que levamos essa coisa toda muito a sério”. A autodepreciação conjunta estabelece uma ponte que é muito real, em que convida ambos os lados a baixar a guarda e a remover as máscaras, sugerindo (e magicamente criando) um espaço comum que é seguro e amigável o bastante para tornar essas façanhas possíveis. O nordestino, que é especialista em não levar certas coisas muito a sério, estabelece com facilidade esse tipo de ponte entre humanidades.
Mantendo-se dentro da bolha de zero condenação que criou no passo 1, parta você também do pressuposto de que o seu interlocutor concorda com você sobre o que é humano e fundamental. Você pode se surpreender com o tanto de terreno que conseguem limpar em comum.
3. Convide para dançar
Ninguém escolhe uma solução extrema como Bolsonaro sem saber que corre o risco de ser incompreendido. Fato é que a incompreensao dói de qualquer maneira, antecipada ou não.
A terceira aplicação é simples: você precisa fazer com que o eleitor de Bolsonaro se apaixone por você.
Não importa na verdade o seu gênero ou o dele: que homem heterossexual pode se apaixonar por homem heterossexual o próprio fenômeno Bolsonaro comprovou além que qualquer dúvida, e as demais combinações devem causar problemas ainda menores. Você precisa fazer com que o eleitor de Bolsonaro se apaixone por você
Quando digo pra você fazer o eleitor de Bolsonaro se apaixonar não estou, é importante salientar, sugerindo nada de sexual. Na realidade, a coisa toda só funciona se o amor for platônico. Preciso lembrar que eleitor de Bolsonaro não nasce picareta? É falta de amor. Ele só quer ser compreendido, e você muito claramente não está compreendendo nada. É por isso que não pode ser amor fingido, tem de ser a coisa vera, genuína, o abraço do verdadeiro amor – da parte sua e da dele. E que sacrifício é grande demais para a democracia?
Na batalha pela conquista, nenhum golpe é baixo demais e toda galanteria aquém da linha do assédio é permitida. Mande flores, cubra de presentes, cozinhe e presenteie pratos favoritos, elogie sem moderação, passeiem de mãos dadas no parque, assistam o jogo com pipoca e guaraná, convide para uma noite na discoteca ou no forró, mostre~se consistentemente disponível, amável e compreensivo.
Como passo final convide para jantar, e depois de cearem diga a ele ou a ela mais ou menos assim:
– Quero te dizer três coisas a respeito da discordância política que nos uniu: duas dizem respeito a você e uma diz respeito a mim. Primeiro, é sincero: entendo e respeito o seu rancor pelo PT, de que eu em grande parte compartilho. A gente pode sentar agora mesmo e fazer uma lista, escrever um livro, calibrar os nossos rancores e classificar as mancadas do PT entre enormes e imperdoáveis. Só preciso que você entenda que eu entendo e respeito. Segunda coisa: o seu plano vai dar certo. O seu voto no Bolsonaro vai destruir todo o rastro do PT com 100% de certeza. Fim, ponto final, medida definitiva para eliminar o PT. Posso dizer de novo? O seu plano vai dar certo e você tem todo o poder; eu tenho zero poder.
Respire.
– A terceira coisa, que diz respeito a mim, é que o Bolsonaro vai destruir o PT mas vai levar junto grande parte da democracia: eu e você sabemos disso, não vamos fazer de conta que não. Agora você vai me dizer: “de que me importa preservar a democracia quando Bolsonaro é a minha chance, a minha única chance, de eliminar o PT e tudo que ele representa do meu presente e do meu futuro? Se eu votar Bolsonaro destruo o PT, mas se eu não votar Bolsonaro o PT volta! A democracia acaba voltando, o que não pode deixar de acabar é a ameaça do PT.” Eu te digo porque: na democracia ninguém precisa viver com medo de representar aquilo que representa. É uma ideia forte porque acolhe a todos, mas é frágil porque depende que todos continuem respeitando a ideia. No Brasil de hoje, com Temer no Planato, Lula na cadeia e Bolsonaro livre, todo mundo pode viver do jeito que vive sem grandes medos de ser o que é. Com democracia é assim. Era já assim quando Lula estava no Planato, Temer no inferno e Bolsonaro no exército elaborando um plano para explodir quartéis com bombas-relógio. O ambiente democrático, sem dizer nada, convida as pessoas a viverem pensando diferente uma das outras, sendo diferentes uma das outras e tentando convencer umas às outras (tipo nós agora), como se viver cada um de um jeito fosse parte da vida e não ameaça de morte.
– Era 2002 – continue – e o José Serra já ameaçava que se Lula chegasse ao poder o Brasil iria virar uma Venezuela. Ele estava errado, mas não tinha como saber. Nós temos como saber que com Haddad o Brasil não vai virar uma Venezuela. Os governos do PT a gente conhece, são uma merda mas não destruíram o ambiente democrático. Ao contrário, a democracia que não eliminaram é que possibilitou tirar eles do poder. A primeira coisa que Bolsonaro disse depois do primeiro turno foi que vai colocar um ponto final em todos os ativismos do Brasil. Preciso lembrar que foi o ativismo do Diretas Já que conquistou o seu e o meu direito de eleger o presidente? Foi o ativismo que conquistou o direito de voto para as mulheres no mundo todo. Foi o ativismo, cacete, que tirou a Dilma do poder. Governo sem ativismo tem nome: é ditadura. A política de terra arrasada que vai eliminar o PT vai acabar também com o ambiente democrático, e por que isso importa? A chave da democracia é que mesmo quem não está sendo representado no governo sente que não precisa ter medo de representar aquilo que é. Numa democracia, um anarquista não precisa ter medo de ser o que é, ainda se não tem um representante anarquista no governo. Num governo autoritário a paz entre o povo é muito mais difícil de manter, porque quem não está no governo passa a ter medo de representar aquilo que representa, coisa que não acontece neste país desde… a ditadura. Bolsonaro é o cara que não faz dois meses convidou os seus eleitores a metralhar com ele a oposição. Ainda não chegou ao poder e muita gente já se sente autorizada a fazer violência no nome dele, olhe as notícias aqui. Votando em Bolsonaro no dia 28 você vai estar transformando cidadãos em alvos, sem direito a ativismo para recorrer à mudança de status. Quem serão os alvos Bolsonaro já definiu claramente ao longo da carreira e da campanha: afrodescendentes, mulheres, índios, viados, sapatões, comunistas, pobres, quilombolas, artistas, sertanejos, ribeirinhos, ecologistas, feministas, ciganos, estrangeiros, venezuelanos e todas as minorias.
Nessa hora o eleitor de Bolsonaro vai dizer:
– E porque eu deveria votar em defesa dessas categorias, sendo que não me representam?
– A coisa a se defender – você vai dizer – é aquela que sustenta a dignidade de todos, porque nesse mundo ninguém vive sozinho dentro da sua categoria. O respeito ao diferente é a base da democracia, do contrário bastaria eliminar quem discorda de você em vez de ir às urnas. O seu candidato é muito livre para dizer que vai garantir as práticas democráticas e para rejeitar publicamente a ditadura e a tortura, mas Fernando Haddad está ganhando uma multidão de votos de gente que nunca votou e que nunca vai voltar a votar no PT, só por oferecer essa mais básica das garantias. O paradoxo é que como estamos ainda dentro do espectro democrático da realidade, a fim de instaurar a ditadura, a fim de eliminar os ativismos que sustentam a democracia, a fim de transformar cidadãos em alvos, a fim de “fuzilar a petralhada,” o candidato a ditador precisa de você. Ele não consegue sozinho, porque deste lado do espectro a democracia magicamente nos protege a todos. Sem o seu voto Bolsonaro não passa de um homenzinho violento e triste. Ele já anunciou que vai torturar e destruir, mas é gloriosamente impotente dentro deste curto intervalo democrático, do qual nos lembraremos para sempre. A fim de alterar a realidade minha e sua Bolsonaro precisa da sua autorização: não autorize. Pense bem na hora de votar. Rode a baiana e faça como Churchill, que disse que se Hitler invadisse o inferno se tornaria aliado do diabo: vote 13 Satã contra o Exterminador do Futuro. Se não conseguir juntar as forças para votar pela democracia, qualquer alternativa é superior à eliminação das alternativas. Digite um número qualquer e clique CONFIRME. O Messias vai arrombar do mesmo jeito, mas a responsabilidade não vai ter sido sua. Mas se for votar Bolsonaro, colega, se for votar no coturno, vote sem ilusões, vote truculento, vote consciente. Você pode achar só está eliminando o PT, mas vai estar no mesmo gesto gravando um alvo na minha cabeça (nesse momento pegue o indicador do cara e aponte para a sua testa, sua própria testa), bem aqui. De cidadão eu viro alvo, porque a democracia te concedeu esse último desejo.
E entregue, numa caixinha daquelas que os apaixonados usam para presentear anéis, uma bala reluzente de revólver.